A grossa flora dos comentadores profissionais
A Rede mudou tudo e não mudou nada. Casos recentes de pedofilia, bestialidade e canibalismo mostram-na sob uma luz menos simpática, mas nada se faz na Rede que deixasse de se fazer fora de muros virtuais. No entanto, incrementa a acessibilidade e a capacidade de divulgação: fraudes bancárias, devassa da intimidade, para não falar de pedofilia, bestialidade e canibalismo, entram-nos pelo computador dentro. Isto para além dos homicídios por vírus informático, que se anunciam ao virar do decénio. E sempre a pedofilia, a bestialidade e o canibalismo.
(fim da introdução de choque, à tablóide)
A capacidade de divulgação da Rede é tanta que não há malfeitor que se preze que não tenha um blogue, o qual vira campeão de audiência com a consumação do crime. Mas há um outro aspecto para que não se tem chamado a atenção: o uso de compulsivo de blogues pelos comentadores profissionais.
(inflexão subtilíssima para o tema que se pretende abordar)
Tradicionalmente, esta flora debitava nos jornais, na rádio e na televisão, contidos num espaço que os delimitava. Agora pululam pela blogosfera, sem com isso deixar de frequentar os meios tradicionais.
(aproximação à mouche)
O comportamento dos comentadores profissionais é compulsivo: só conseguem viver na luz da opinião pública. Deslocam-se de estação de rádio para estação de televisão, de jornal para revista, de blogue para site, largando milhares de caracteres nos sítios mais díspares e revelando, na maior parte dos casos, uma disponibilidade quase total para comentar sobre todo e qualquer assunto, obedecendo apenas às regras da visibilidade e do preço por palavra.
(aquecendo)
No caso português, os comentadores não serão muitos, embora a profusão de opiniões que emitem e o facto de comentarem em todo e qualquer órgão lhes dê uma imagem de multiplicidade. São, na sua esmagadora maioria, indivíduos incapazes de vencer nas actividades que comentam, normalmente jacarés na opinião e lagartixas na prática. Claro que o sistema de rotatividade permite que se conheçam todos muito bem e encenem combates, quando na verdade estão de acordo no objectivo comum de ganhar notoriedade, não por fazer, mas por comentar. Estão a meio caminho entre uma carreira que desejaram e a fama de comentar quem a detém. Querem ser a notícia e o comentário. É o caso de (dar uma rapidinha pelos blogues de opinião política e chapar aqui os nomes da primeira dezena de comentadores profissionais encontrados, mesmo que alguns até sejam informados, correctos e/ou divertidos, com a vantagem de diluir quem eventualmente interesse atingir). Todos se conhecem e se cumprimentam, quando é preciso elogiam-se e referem-se mutuamente as obras, numa espécie de clube das palmadinhas nas costas, que dura o tempo de um programa, coisa por natureza efémera.
Imaginam-se como uma espécie de aristocracia da Rede, a qual, obviamente, não existia antes da sua chegada. São profundamente ignorantes dos mundos virtuais que os antecederam, de todas as coisas giras que já foram feitas, do que fuja ao seu umbigo desmesurado. Usam amiúde boutades como "é a primeira vez que se faz isto na Internet" e tomam a gargalhada que os recebe pelo rufar dos tambores. Eles, os garantes da qualidade e vigilantes dos bons costumes, acreditam que as suas opiniões fazem doutrina e os seus pronunciamentos são leis. Mas o problema não é só o egotismo tosco e a visão truncada da Rede, há também uma procura de atenção, uma pulsão psicológica para "pirilampar" que se revela na já chamada "parasitação de vivências alheias". Com efeito, muitos destes comentadores usam os blogues alheios para se publicitar e encontram na catalogação dos demais, dos seus hábitos e pretensos vícios, uma plataforma para tentar aumentar as audiências.
(valerá a pena meter aqui a farpa da total ausência de sentido de humor que caracteriza a grossa flora?)
Não são desviantes, mas têm - e suscitam - algumas formas perturbadoras de comportamento. A sua chegada à Rede implica, quase sempre, um surto público de afagos no ego. Depois afastam, normalmente, qualquer possibilidade de discussão que não passe pelo estatuto de leitor-acólito. Quando há um embrião de discussão, costuma ser rudimentar, dicotómico e desigual: de um lado o comentador profissional, proclamando-se douto até à medula da sua biblioteca, pingando honestidade intelectual pelas teclas e exibindo o Bilhete de Identidade na queixada, do outro os diletantes que pensam sem pagamento em espécie. Que serão sempre anónimos, mesmo que assinem com o nome completo. Daí ao policiamento de comportamentos e aos julgamentos na praça pública vai o voo de uma borboleta atraída pela luz.
Em que mundo banal, de segunda escolha, vive esta gente? No mesmo que alimenta a inépcia nacional e a aridez de ideias. Numa sociedade virada para a mediatização de tudo, para o espectáculo da identidade, quem pretende manter-se na ribalta mais do que quinze minutos tem de encontrar inimigos novos e de tentar dominar palcos diferentes, sob pena de ver o seu holofote esmagado pelas centenas de isqueiros dos outros, os que não precisam de escarrapachar o nome por não pretenderem fazer dele forma de vida. A reputação de iluminados, de génios reconhecidos inter pares, de justiceiros identificados num culto da oligarquia comentarista é o seu alimento, pelo que não é de admirar que se julguem em plena luta de classes.
(exercício de paráfrase sobre um texto de José Pacheco Pereira, também publicado no Público de 20/04/2006 - link não disponível)
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